
Em meio aos traços de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, os bordados de Belém do Pará ganham vida nas passarelas do Canadá. A obra da estilista brasiliense Carolina Botelho floresce como os ipês e une a arte da costura de uma família do Norte, a memória afetiva e a identidade candanga em um desfile independente.
Assim como o tempo de Brasília, o evento marca uma estação bem definida na vida da estilista. Sua coleção, Lines of Heritage, teve um ritmo de produção lento e cheio de carinho. Todas as peças foram produzidas por uma família de costureiras de Belém e combinam tecidos como zibeline, renda, algodão, linho e organza de seda. A costureira Maria Oliveira reuniu irmãs e parentes para dar vida às obras, que dialogam com décadas de experiência e a nova fase da moda autoral.
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Entre as duas brasilidades, Carolina leva em sua coleção um pedaço de cada cidade até a América do Norte. "Essa coleção, mentorada por Jacqueline de Alcântara, é um pedaço de mim. Brasília me moldou com sua geometria, seu céu aberto e sua disciplina silenciosa. Já Belém me trouxe a delicadeza manual, a memória coletiva das mulheres que bordam e costuram. Levo esses dois mundos comigo, costurados em cada um dos 16 looks", afirma a estilista, que já subiu duas vezes aos palcos da Vancouver Fashion Week.
Os bordados do Norte
A junção de potências entre Brasília e Belém resultou em uma aliança criativa e inovadora. Mas, muito além da técnica, Carolina afirma que as origens do Norte na coleção Lines of Heritage são decorrentes do amor com que as costureiras bordam as peças. "No trabalho artesanal de Maria e sua família, é possível observar muito além da paciência e da precisão. Em cada detalhe, o carinho e o cuidado com que tratam a coleção transbordam nas costuras", ressalta.
A estilista explica as dificuldades de integrar a técnica manual do Norte do Brasil, distante do imediatismo que domina grande parte da moda contemporânea, às peças oriundas do Centro-Oeste. "Unir os dois recursos significou a mistura da arquitetura, da tradição, do artesanato e do modernismo. Infelizmente, o processo de respeitar o tempo do feito à mão não é fácil. Mas, com o passar dos anos, entendi que cada ponto, costura e bordado tem o seu ritmo", relata.
A distância entre Canadá e Belém do Pará trouxe a Carolina o medo de sua visão não ser traduzida. Mas, com o cuidado e o talento da família nortista, ela consegue levar às passarelas mais do que simples roupas: uma experiência completa de memória, resgate da identidade e liberdade na moda. Dessa experiência, a estilista só leva aprendizados. "Você não vai conseguir controlar tudo, mas quando se conecta de verdade com suas raízes e acredita no que está fazendo, o resultado é autêntico", finaliza.
Impulso da capital
Apesar do impacto positivo no mundo da moda, Brasília, para Carolina, tem um alcance muito maior quando falamos de lar. Antes de se mudar para o Canadá, a estilista cresceu e se desenvolveu na capital. E, com amor e boas memórias, guarda as lembranças das vivências brasilienses. "Tive uma infância especial. Eu me lembro de brincar embaixo do prédio na 110 Sul e jogar bete na rua. Brasília sempre pareceu segura, mesmo sendo capital", lembra.
Viver o sonho em outro país nem sempre é fácil, especialmente quando a cidade de origem molda a identidade de alguém. Com uma base forte no campo cultural, Carolina revela como músicas, artes visuais e até a política influenciaram seu olhar criativo. Estar longe de um lugar tão mágico, então, tornou-se saudade. "Cada canto tem uma história minha: vitórias, momentos ruins e muitos bons. O pôr do sol mais lindo do mundo, as ruas organizadas, a cidade planejada, tudo ali tem um porquê", comenta.
Com a pluralidade de monumentos históricos, Brasília influenciou o olhar de Carolina para a moda. "A estética modernista, a mistura de simplicidade e grandiosidade, e o contraste entre concreto e natureza... não têm como não influenciar." Com um olhar admirado em relação ao projeto de Juscelino Kubitschek, ela ainda sonha acordada ao se lembrar da Ponte JK, do Parque da Cidade, do Plano Piloto e da Catedral, onde sonha em se casar no Brasil.
E foi nessa grandiosidade da cidade planejada que Carolina Botelho pensou nos azulejos de Athos Bulcão, sonhou com o céu de Brasília e, por fim, criou os desenhos das 16 peças que serão apresentadas, em quatro atos, no desfile. "Brasília me ensinou que a beleza pode ser monumental, mas também silenciosa. Quis mostrar isso em estampas exclusivas, em linhas geométricas e em cores que remetem ao pôr do sol da cidade", explica.
Moda e maternidade
Em 2022, após experimentar os desafios da maternidade, Carolina, recém-chegada ao mundo da moda, criou a marca Dress Cozy com o intuito de vestir mulheres reais em momentos de recomeço. A chegada da filha, Clara, não influenciou apenas as tendências de estilo, mas transformou a estilista por completo. "Tudo em mim foi transformado. Quando minha filha tinha poucos meses, precisei de uma roupa para batizá-la. Fui mal-atendida em uma loja local e, naquele dia, jurei que nunca mais me sentiria daquele jeito. Assim nasceu a marca", conta.
Algum tempo depois de lançar a primeira marca, Carolina subiu às passarelas do Vancouver Fashion Week e viu sua trajetória mudar de rumo. O desfile Metamorphose trouxe à cena um vestido marcante, coberto por mais de 1.500 borboletas aplicadas à mão, que marcou sua virada para a moda autoral. Foi nesse palco, diante do público internacional, que ela percebeu a separação definitiva em relação à fase inicial de sua carreira.
Se no começo a proposta girava em torno do conforto, a caminhada pessoal e criativa acabou conduzindo a estilista para a alfaiataria sob medida, em que cada peça nasce única e carrega a força de uma identidade em movimento. "A maternidade me mostrou a necessidade do abraço, mas também da reinvenção. A Carolina Botelho nasce desse equilíbrio: vestir com precisão e, ao mesmo tempo, abraçar a história de cada mulher", afirma.
Mas a experiência na moda não se limita apenas a Carolina e à filha, Clara. Quando era criança, ela também tinha uma referência dentro de casa: a mãe. "Quando pequena, assistia à minha mãe se arrumando para trabalhar. Achava incrível como uma roupa podia transformá-la todos os dias em uma pessoa diferente, empoderada e profissional".
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
Revista do Correio
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