
JÉSSICA AMORIM, cabelereira, terapeuta capilar, mestre e pesquisadora em direitos humanos, raça, gênero e cosméticos naturais
Recentemente, foi aprovada a Lei nº 15.154/2025, que criou regras específicas para quem produz cosméticos de forma artesanal e natural no Brasil. O que parece ser apenas uma questão técnica é, na verdade, uma questão política, econômica e também racial. Essencialmente, é uma questão de liberdade. Essa nova lei muda a Lei nº 6.360/1976, acrescentando um parágrafo ao artigo 27. Para cosméticos, perfumes e produtos de higiene feitos artesanalmente, não será mais necessário fazer registro prévio na Anvisa, desde que os produtos sigam critérios fixados em regulamentação própria. Ainda assim, continuam sujeitos à fiscalização sanitária, mas agora poderão chegar ao mercado de forma mais rápida e simples.
Para além da burocracia, essa mudança significa abrir espaço para pequenos produtores, muitos deles mulheres negras, periféricas, indígenas, que são guardiãs de saberes ancestrais e negócios ligados à cosmética natural. É o início do rompimento das barreiras que sempre privilegiaram grandes indústrias cosméticas e que, na prática, excluíam corpos e identidades diversas do mercado. É sobre economia, mas também sobre reparação, autonomia, o direito de existir e empreender com os nossos saberes e a nossa estética.
Sendo mulher negra terapeuta capilar, cabeleireira especializada em cabelos naturais e mestre em direitos humanos, aqui estou a comemorar e, finalmente, respiro um pouco mais aliviada. Em janeiro deste ano, defendi minha dissertação. Falei sobre o quanto a ausência de marco regulatório na cosmética natural estrangula pequenos negócios, principalmente os conduzidos por mulheres negras. Agora, posso dizer: temos uma nova lei que pode ser o começo de uma verdadeira revolução.
Mulheres negras ocupam a linha de frente na cosmética natural. Primeiro, porque herdamos saberes ancestrais que transformam plantas, manteigas, óleos e ervas em tecnologia viva. Nossa cosmética é ciência, cultura e ancestralidade, não apenas beleza. Segundo, porque fomos historicamente excluídas da indústria tradicional da beleza, que construiu produtos pensando em padrões europeus, tachou-nos fora do padrão, ofereceu-nos químicas agressivas, alisantes nocivos e cosméticos incapazes de respeitar a realidade dos nossos cabelos ou da nossa pele negra.
Mas, até agora, vivíamos num limbo jurídico. Quem produzia cosmético natural artesanal trabalhava sempre à margem: temendo a vigilância sanitária, sem conseguir registrar produtos, e mesmo na informalidade. E quando o negócio cresce, a lei era a mesma vigente para grandes indústrias cosméticas. A informalidade não era escolha: muitas vezes, era a única saída.
A ausência de regulamentação não era apenas detalhe burocrático; também funcionava como meio de sinalizar que a cosmética natural é campo de disputa e de impor quem poderia ou não fazer parte desse jogo. Agora, o cenário é outro. A cosmética natural não é um "nicho", mas território legítimo de ciência, cultura, geração de renda e saúde pública.
Isso tem implicações imensas. Significa que mulheres negras poderão formalizar negócios, ampliar a exposição de seus produtos, integrar cadeias produtivas maiores sem medo. E poderão crescer. Saberes afro-brasileiros, muitas vezes vistos como caseiros ou empíricos, passam a ter valor jurídico e comercial. Isso é reparação histórica.
Não se trata só de vender cremes ou óleos. Trata-se de soberania econômica. Porque a mulher negra da classe C, que já é a maior consumidora de cosméticos no Brasil, quer consumir produtos alinhados à sua identidade, seguros e feitos por quem conhece sua realidade. E quer, também, produzir de modo certo e regulamentado.
Mas precisamos estar alertas. A regulamentação também pode excluir, se feita sem olhar social. Taxas elevadas, exigências técnicas absurdas ou barreiras no acesso ao crédito podem sufocar quem trabalha na base. A lei não pode ser instrumento para privilegiar grandes marcas que se disfarçam de "naturais" para esmagar as pequenas. A luta, agora, é garantir que a lei seja implementada com justiça social, ouvindo quem está na ponta, no pequeno laboratório, no salão de bairro, no mercado de rua.
É avanço histórico. Mas não é ponto final. Começa-se a corrigir a rota. Deve-se valorizar a mulher negra como cientista, empreendedora, formuladora e guardiã de saberes. Em janeiro, eu dizia que a falta de legislação adequada tornava quase invisíveis as cosmetólogas negras. Hoje, escrevo que a lei as torna visíveis, mas que é preciso lutar para permanecerem visíveis, fortes e livres. Cosmética natural é resistência. E, também, direito.