ARTIGO

Navios negreiros e petroleiros: o Brasil apegado ao atraso

Assim como no passado tinha interesse nos navios negreiros, agora a elite brasileira tem interesse nos navios petroleiros. Enquanto isso, a China faz uma revolução energética que a colocará de fato na supremacia mundial tecnológica

14/05/2015. Credito: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press. Navio petroleiro Andre Reboucas e do batismo do navio Marcilio Dias, no Porto de Suape, em Ipojuca. -  (crédito: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press)
14/05/2015. Credito: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press. Navio petroleiro Andre Reboucas e do batismo do navio Marcilio Dias, no Porto de Suape, em Ipojuca. - (crédito: Ricardo Fernandes/DP/D.A Press)

MARCELO COUTINHO, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em indústria de hidrogênio verde

O tráfico negreiro foi, sem dúvida alguma, um dos mais tristes capítulos da história mundial, e o Brasil teve parcela importante de culpa nisso. Mais de 11 milhões de africanos foram transportados da forma mais desumana possível nos navios negreiros. O Brasil foi o último país a abolir a prática em todo o Ocidente. A Lei Eusébio de Queirós, de 1850, proibiu definitivamente o comércio de pessoas escravizadas. E somente em 1988, com a Lei Áurea, o país aboliu a escravidão.

O Brasil já independente resistiu ao máximo em acabar com o tráfico de escravos. Não fosse a enorme pressão da poderosa Grã-Bretanha, o país simplesmente continuaria com esse pesadelo humano por muito mais tempo. A elite, à época, alegava que o fim do tráfico negreiro traria enormes prejuízos econômicos ao Brasil e chegou até a constituir um Itamaraty para combater internacionalmente as ideias abolicionistas. Felizmente, essa abjeta diplomacia fracassou e o tráfico acabou, fazendo, assim, com que o Brasil pudesse entrar na modernidade civilizatória, ainda que tardiamente.

O navio negreiro era uma embarcação de carga que transportava pessoas escravizadas, principalmente da África para as Américas até o século 19, como se fosse uma commodity. Mas o que isso tem a ver com os navios petroleiros de hoje, quase 200 anos depois? Assim como o fim do tráfico negreiro demarcou o início tardio e relutante da civilização moderna brasileira, o fim da era do petróleo demarcará o início da civilização tardia e relutante pós-carbono no Brasil. São vidas humanas em questão, só que, agora, numa escala muito maior. Centenas de milhões de pessoas no mundo já são seriamente atingidas pelas mudanças climáticas. A catástrofe recente do Rio Grande do Sul é prova disso.

Assim como na época em que combateu o imperialismo europeu numa luta inglória e vergonhosa para manter seus navios negreiros com justificativas econômicas e sociais, o Brasil agora combate o neoimperialismo europeu numa luta igualmente inglória para manter seus navios petroleiros e de biocombustíveis a todo vapor, com justificativas socioeconômicas. Sim, o Brasil aderiu à Opep e aos países alinhados com a manutenção do comércio de petróleo. Não tem feito nada concretamente para diminuir a dependência do petróleo e gás natural nos últimos anos, e faz isso porque tem interesse crescente no comércio de combustíveis fósseis. Em 2024, o petróleo se consolidou como o principal produto de exportação brasileira, gerando US$ 44,8 bilhões e respondendo por 13,3% das vendas externas do país.

Assim como no passado tinha interesse nos navios negreiros, agora a elite brasileira tem interesse nos navios petroleiros. Segundo o último relatório da Opep, "o Brasil está entre os principais impulsionadores do crescimento futuro do fornecimento global de petróleo". O país vem subindo tanto a demanda e o consumo quanto a produção de petróleo, e pretende aumentar ainda mais nas próximas décadas. O transporte rodoferroviário deve puxar o consumo de diesel no país em 42% até 2050, e a aviação impulsionará o querosene de aviação em 58%.

O Brasil trabalha para adiar a transição energética o quanto pode porque seu orçamento vem em grande parte da venda de combustíveis sujos, assim como parte do dinheiro na primeira metade do século 19 vinha do tráfico negreiro. O país não quer parar com os navios petroleiros, quer, na verdade, aumentar, e trabalha internacionalmente na defesa dos interesses fósseis mantendo um verniz de sustentabilidade. O discurso é pró-transição energética renovável, mas a prática é outra muito diferente. Quando não estão protegendo o capital do petróleo, as instituições nacionais estão defendendo usineiros que fabricam etanol e biodiesel às custas das florestas brasileiras, emitindo ainda mais carbono.

Desta vez, não há um Reino Unido que faça um bloqueio naval aos navios petroleiros e force, assim, a transição na marra, embora já haja uma mudança de era em andamento no mundo. Isso significa que o Brasil continuará como está por mais tempo, com falsas alegações, perdendo na prática a corrida pela indústria energética renovável global. Enquanto o país assina no Brics um documento que dá sobrevida aos combustíveis fósseis e brinca de petróleo na Foz do Amazonas, a China faz uma revolução energética que a colocará de fato na supremacia mundial tecnológica numa área absolutamente central para o desenvolvimento. A indústria de hidrogênio verde chinesa pisou no acelerador, assim como a potência asiática já vinha fazendo com a indústria eólica, solar e de baterias. O Brasil colonial agradece.

 

Por Opinião
postado em 14/08/2025 06:04
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