Visão do Correio

Direitos humanos sem base técnica

A reconhecida qualidade técnica do relatório dos EUA sobre direitos humanos o alçou ao status de referência em tribunais internacionais. A versão atual, sem base técnica, perde tal importância

Relatório de direitos humanos da gestão Trump perde caráter técnico e vira instrumento político  -  (crédito:  AFP)
Relatório de direitos humanos da gestão Trump perde caráter técnico e vira instrumento político - (crédito: AFP)

Em um novo capítulo da escalada da tensão entre Brasília e Washington, a diplomacia estadunidense divulga relatório afirmando que o Brasil vive um momento de "declínio" dos direitos humanos — conclusão feita a partir de  "relatos confiáveis" de crimes como assassinatos arbitrários e ilegais, torturas, restrições à liberdade de imprensa e repressão ao debate democrático. Falta embasamento para as graves acusações, e sobram críticas ao Judiciário e ao Executivo brasileiro, deixando evidente que o documento tem, na verdade, pretensões políticas.

A interpretação seletiva não é exclusiva à análise da situação brasileira. Reconhecido internacionalmente por traçar um cenário técnico sobre o respeito aos direitos humanos pelo mundo, o relatório elaborado na chamada gestão Trump 2.0 não se presta ao objetivo tradicional. Perde, portanto, profundidade — tem um quarto do tamanho da edição anterior, feita no governo Biden — e cai no descrédito.

A leitura da nova avaliação do Departamento de Estado americano leva, por exemplo, à conclusão de que El Salvador vive um momento de avanço na garantia dos direitos fundamentais, sem "relatos confiáveis de violações significativas dos direitos humanos" em 2024 e uma investida do presidente Nayib Bukele para "identificar e punir autoridades que cometeram violações". Organizações reconhecidas na área, como a Human Rights Watch, relatam o contrário.

Menor que o Sergipe, El Salvador, na América Central, tem a maior taxa de encarceramento do planeta. A política de tolerância zero adotada por Bukele, um aliado de Trump, é entendida por especialistas como um regime de exceção que levou mais de 81 mil pessoas à prisão — sendo 3 mil menores de idade — e funciona à base de detenções sem mandado, torturas e falta de acesso a advogados, entre outras atrocidades. Bukele se autointitula o "ditador mais legal do mundo" e recebe dinheiro da Casa Branca para receber deportados em suas penitenciárias.

Outro desencontro de interpretações tem como palco a Faixa de Gaza. A constatação de que a população do conclave é vítima de um genocídio e, consequemente, a pressão pelo fim do crime humanitário crescem pelo mundo. Mas o relatório americano se limita a apontar que "as organizações terroristas Hamas e Hezbollah continuam a atacar indiscriminadamente civis israelenses, violando a lei dos conflitos armados". Em outro trecho, acusa a África do Sul de cometer genocídio e racismo contra a população branca, uma das pautas sem fundamento da extrema-direita. 

França, Reino Unido e Alemanha também não são poupados. Lá, a "deterioração" dos direitos humanos se dá sobretudo em relação a violações na liberdade de expressão, na avaliação da diplomacia estadunidense. Curiosamente é também no continente europeu onde há importantes avanços na responsabilização das big techs sobre conteúdos criminosos publicados nas redes sociais. 

Não faltam evidências, portanto, de que os Estados Unidos fazem um retrato comprometido dos direitos humanos pelo mundo. Sem, inclusive, olhar para questões internas. Há de se destacar que, no mesmo dia em que o relatório de viés ideológico foi divulgado, o chefe do Pentágono compartilhou um vídeo defendendo o fim do voto feminino e homens da Guarda Nacional desembarcaram em Washington para acabar com a  "trágica emergência de segurança" na capital, que, segundo dados oficiais, tem o menor índice de criminalidade dos últimos 30 anos.

Para além dos embates políticos potencializados pelo novo documento, há o risco de prejuízos justamente na condução de questões humanitárias. A reconhecida qualidade técnica do relatório o alçou ao status de referência em tribunais internacionais. A versão atual, sem base técnica, perde tal importância. Assim, Trump dá novo golpe no sistema internacional de promoção da cooperação e da paz, a exemplo do movimento de enfraquecimento da OMS orquestrado antes mesmo de assumir a presidência.

Por Opinião
postado em 14/08/2025 06:00
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