
BENITO SALOMÃO, professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Em artigos anteriores neste espaço, discorri sobre os bens públicos. Sua natureza difere dos bens privados devido a duas características: a não rivalidade e a não exclusibilidade. Por não exclusibilidade supõe-se que o acesso de um usuário não afeta o acesso de outro, daí tem-se a segunda característica: a não rivalidade, que significa que consumidores não devem rivalizar pelo bem-estar gerado por esse bem cujo acesso não é exclusivo. Bens públicos diferem em sua essência de bens privados que passam pelo sistema de preços e, por isso, geram excludência e rivalidade pelo acesso.
A principal justificativa para o fornecimento público de bens consiste no conceito de externalidades. A intervenção do setor público nesse sentido se justifica em duas situações: i) gerar externalidades positivas e ii) corrigir externalidades negativas. Mas, afinal, o que isso tem a ver com estabilidade democrática?
Depois da crise de 2008, sucessivos episódios de natureza política eclodiram em diferentes lugares do mundo. Grande parte desses episódios foram caracterizados pela canalização de um enorme sentimento de insatisfação contra o status quo. Isso tem gerado, em muitos lugares, uma relação permanentemente conflitiva entre segmentos sociais que contestam o modo de organização social conhecido como democracias liberais, contra aqueles que entendem os riscos de retrocessos em termos de garantias e liberdades individuais.
É como se a política, tida como arte de mediar diferenças de forma pacífica, cedesse espaço nas sociedades contemporâneas para um clima de contínua truculência e beligerância. Esse terreno é propício para a proliferação do populismo como uma pseudossolução para conflitos. No meio desse conflito e ambiente hostil, estão as instituições democráticas, tendo que lidar com a oposição daqueles que querem subvertê-las.
Em outro artigo neste espaço, mencionei o Paradoxo da Tolerância, de Norberto Bobbio, publicado no seu Elogio à serenidade. O pressuposto básico para uma organização social democrática é a tolerância, entendida aqui como respeito a opiniões divergentes. Porém, em contextos como o atual, é permitido à democracia tolerar divergências quanto à sua própria existência? A resposta evidentemente é não, mas isso causa um problema adicional, já que esse conjunto de ideias antidemocráticas estão aí, compõem parte do "espírito do nosso tempo" e as democracias ocidentais parecem não estar preparadas, no campo da política e da justiça, para enfrentar arroubos autoritários que surgem e se proliferam mundo afora.
Isso principalmente porque boa parte do discurso autoritário dos nossos tempos vem camuflado por uma falsa roupagem de defesa das liberdades. O novo autoritarismo reivindica direitos como o de liberdade de expressão para atacar as instituições constituídas, o que empurra as instituições para uma posição reativa, quase sempre tendo que mediar situações diante do dilema do Paradoxo da Tolerância: tolerar ou não posições políticas contrárias à sua própria existência? Não há resposta unificada, tão pouco coordenada. Nos lugares onde o dilema aparece, as reações têm sido heterogêneas.
Mas, a propósito, o que tudo isso tem a ver com bens públicos? A resposta é simples, as instabilidades democráticas, que se tornaram o novo normal neste quarto de século, para além das implicações político-jurídicas supracitadas, exercem efeitos deletérios sobre a performance econômica. O modo de produção capitalista sustenta-se em dois pilares: i) a propriedade privada e ii) as trocas de excedentes. Esses pressupostos se sustentam em decisões humanas de produção e consumo e, para que sejam verificadas em plenitude, um elemento precisa ser verificado — a confiança.
No livro The animal spirits, George Akerlof e Robert Shiller argumentam que a confiança (ou a falta dela) se propaga numa economia como uma epidemia. Nesse contexto, as instabilidades geradas pelo processo político beligerante do século 21 tem elevada capacidade de prejudicar o ambiente de negócios. É como se tais instabilidades atuassem como uma externalidade negativa sobre o organismo econômico, produzindo incertezas e comprimindo o horizonte de previsibilidade de agentes econômicos que devem decidir.
Como tais instabilidades são difíceis de serem quantificadas, os economistas fazem pouca menção a elas, tratando como o ruído dos seus modelos. Porém, o fato de um evento não ser observável (ou quantificável) não o torna inexistente. Nesse aspecto, uma democracia estável, com respeito às instituições e às opiniões divergentes (o princípio da tolerância), deve ser alçada ao status de bem público, estimulando a confiança, gerando um ambiente favorável à economia de negócios, de forma que todos se beneficiem dele. Isto é, a estabilidade democrática é um bem não excludente e não rival.