
Jaime Pinsky — Historiador e editor, professor titular concursado da Unicamp, doutor e livre docente da USP, escritor
Em meados de 1965, duas décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, os pracinhas sorocabanos receberam um diploma referente à sua participação "na luta contra o nazifascismo". Foi por ocasião de uma sessão inusitada, realizada em um salão nobre do Gabinete de Leitura, em pleno centro de Sorocaba. Fazia um ano que os militares brasileiros haviam derrubado o governo eleito e instituído uma ditadura. Formando a mesa diretora do evento estavam autoridades militares, civis e eclesiásticas. Entre as autoridades circunspectas, chamava a atenção a presença de um jovem, que conduzia a cerimônia. No público, além dos emocionados pracinhas (gente simples, que nunca havia recebido homenagem alguma), estavam suas famílias, populares, a imprensa e muitos estudantes.
Religiosos, militares e universitários juntos, em 1965, logo após o golpe militar de março de 1964? Ora, o movimento militar, que havia derrubado Jango e empalmado o poder, não era exatamente amiguinho de estudantes, muito pelo contrário. Como, então? Nada como recuperar os acontecimentos para entender essa noite inusitada.
Consumado o golpe militar de 1964, um processo repressivo contra supostos adversários se instalou em todo o país. Em alguns casos, a repressão foi desencadeada por ordem dos líderes do movimento ou de seus seguidores graduados, recebendo cobertura da imprensa e obtendo repercussão nacional. Em cidades menores, "autoridades" que se intitulavam representantes do movimento de 1964 botaram as manguinhas de fora e se acharam no direito de decidir o que era "revolucionário" e o que era contrário aos seus alegados ideais. Militares de patente inferior e até policiais sentiram-se na obrigação de confiscar livros, impedir reuniões, fiscalizar peças de teatro e até sessões de cinema. Prendiam pessoas na base do "se eu não sei por que estou prendendo, você sabe por que está sendo preso".
Os militares prendiam as pessoas sem muito critério, e ninguém queria ser a próxima vítima. Queríamos ter liberdade para ir à faculdade, para lecionar nos colégios (quase todos já dávamos aula) e para deixar claro que éramos contra o fascismo. Fizemos uma reunião da diretoria do "centrinho". Alguém sugeriu que fizéssemos uma comissão e fôssemos falar com o coronel de plantão na cidade. Certo, mas com o que na mão? Eles nos dariam um salvo-conduto em troca de nada? Foi quando apareceu a ideia salvadora.
E se fizéssemos uma homenagem aos pracinhas sorocabanos? Afinal, eles lutaram contra o fascismo e o nazismo, e aquela havia sido a mais importante participação bélica do nosso Exército desde a Guerra do Paraguai. Se mandássemos confeccionar um diploma de agradecimento aos pracinhas por terem lutado contra o nazifascismo, os militares de hoje não poderiam questionar. Estaríamos elogiando a instituição pelo que ela fez de bom no passado. E, disse uma colega, por que não fazer uma entrega pública dos diplomas aos ex-soldados? E até entregar a um coronel, como homenagem à instituição, pela sua luta antifascista?
Com o apoio da direção da faculdade, fomos atrás do coronel. Ele marcou um horário. Foi uma situação inusitada — estudantes, de pé, na sala do chefe militar na cidade. Duas meninas e eu expondo os fatos, da nossa maneira: que a sociedade brasileira tem uma enorme dívida para com os militares e voluntários envolvidos na campanha da Itália. Que o fim da Segunda Guerra estará completando 20 anos. Que nosso Centro de Estudos Históricos tem a função de chamar a atenção da população para efemérides importantes, e essa é muito importante. Que queríamos oferecer um diploma para todos os pracinhas vivos e para a família dos já falecidos, ressaltando a bravura, o heroísmo dos brasileiros em sua luta contra o nazifascismo. Que não poderíamos fazer isso adequadamente sem a colaboração do Exército.
O coronel disse que iria estudar o assunto, mas que via a coisa com muita simpatia e até alguma surpresa, vindo de estudantes da área de humanas. Reiterei que não havia por que ele se surpreender, uma vez que sempre fomos contra o nazifascismo, assim como ele, com toda certeza. "Claro, claro, meu jovem", foi sua resposta. Após consultar seus superiores, o coronel me chamou de volta, me chamou pelo nome, disse que adorava história e, "sim, claro, pensei bastante e não há nada contra a homenagem, na qual estarei presente".
Desnecessário será falar da emoção dos antigos pracinhas. Desnecessário também tentar falar da emoção, ainda maior, das famílias dos homenageados, vivos ou já falecidos, que se deram conta do significado histórico do feito de seu parente e de sua contribuição para a democracia. O público seguramente aprendeu alguma coisa com o que viu e sentiu. Nós, estudantes, voltamos a escrever nossa coluna nos jornais. Fiéis à história, leais à democracia.