
Ao longo dos séculos de regime escravocrata no Brasil Colônia e no Brasil Império, a historiografia costuma negligenciar a participação da mão de obra indígena.
Afinal, se é amplamente conhecido que foram milhões os africanos trazidos compulsoriamente para trabalhar como escravizados — estimativas recentes costumam chegar a números próximos de 5 milhões — poucas são as informações sobre a escravidão dos povos originários.
Historiadores contemporâneos, contudo, têm se dedicado a esmiuçar também essa vertente da violenta exploração colonial.
Entre estudiosos do tema, já é consenso de que houve muita escravidão indígena em todo o território que hoje é Brasil — às vezes de forma disfarçada, às vezes de forma muito semelhante à praticada com os africanos.
E embora seja impossível cravar um número, esses pesquisadores acreditam que foram milhares, talvez milhões — sobretudo nas regiões mais pobres e vistas como periféricas na lógica econômica da América Portuguesa.
"É importante ensinar nas escolas sobre escravidão indígena. É importante sabermos como sociedade mesmo", comenta à BBC News Brasil a historiadora Luma Ribeiro Prado, pesquisadora do Laboríndio, o Grupo de Pesquisa sobre o Mundo do Trabalho nas Américas, na Universidade de São Paulo (USP), do Centro de Estudos Mesoamericanos, Amazônicos e Andinos, também na USP e no Instituto Socioambiental (ISA). Prado é autora do livro Cativas Litigantes, que aborda uma faceta do mesmo tema, publicado há pouco mais de um ano.
"Do ponto de vista da memória, é papel nosso continuarmos falando sobre isso porque o país não foi construído apenas por um tipo de mão, um tipo de opressão. Estamos falando de um processo múltiplo e os povos indígenas participaram tanto dessas violências como de todos os trabalhos e resistências", afirma à BBC News Brasil o historiador João Paulo Peixoto Costa, professor na Universidade Estadual do Piauí e no Instituto Federal do Piauí e coordenador do blog 'Indígenas na História: Sempre Obrigados Ao Trabalho'.
Ele conta que "ainda hoje escuto alunos que aprenderam no Ensino Fundamental que indígenas não trabalhavam porque eram preguiçosos e por isso os africanos foram escravizados, que estes tinham constituição física adequada para tanto. Isso é o racismo no sentido mais puro: você falseia a história baseando-se em condições biológicas. Nada disso é verdade. O que teve foi violência para todo lado, assim como teve resistência para todo lado", enfatiza Costa.
Na prática, o emprego da mão de obra indígena de modo compulsório fez parte da realidade do hoje Brasil desde a chegada dos portugueses até o século 19. O que acontece é que essa questão estava no centro de quedas de braços entre os colonos, a Coroa e a Igreja.
E as idas e vindas que ora autorizavam, ora proibiam — mas quase sempre com vista-grossa — esse tipo de prática partiam de discussões sobre direitos básicos que chegavam a questionar até mesmo se o indígena era um ser humano ou não e acabavam cedendo em benefício dos mais poderosos.
Nesse meio-tempo, diversas regulamentações chegaram a ser publicadas. De acordo com levantamento publicado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a primeira legislação da Coroa Portuguesa contra o cativeiro indígena data de 1570 — só permitia a escravização desses com alegação da chamada "guerra justa".
De acordo com Prado, esse termo deriva do direito romano. "Pode ser uma guerra ofensiva ou defensiva. Era autorizada, pela Coroa ou pelos governadores, em casos em que os indígenas se recusavam a serem convertidos [ao catolicismo], praticassem antropofagia ou impedissem a passagem, atrapalhassem o comércio, o deslocamento, os esforços de colonização", diz a historiadora.
Também poderia ser uma guerra defensiva, ou seja, no caso de ataque de tribos indígenas contra assentamentos de colonizadores europeus.
"Neste caso, estava autorizado [pela lei portuguesa] que os sobreviventes fossem escravizados", pontua ela.
Cento e dez anos depois, em 1º de abril de 1680, foram publicadas duas decisões da corte portuguesa que afetaram a questão. A portaria de liberdade dos indígenas seria um documento de certa forma os eximindo da escravidão. É por isso que a data se tornou importante.
Só que na mesma data saiu também um alvará chamado de "regimento das missões". "Autorizava a vinda de religiosos da Companhia de Jesus ao Brasil", contextualiza à BBC News Brasil o historiador Costa.

"Ao mesmo tempo em que a Igreja, entre aspas, defendia os povos indígenas, dizendo que eles tinham alma e por isso não podiam ser escravizados, nos aldeamentos [mantidos por religiosos], os indígenas tinham de fazer todos os serviços. Aprendiam a rezar, mas também faziam roupa, plantavam para alimentar os colonizadores e o clero… E se resistissem, levavam chibatada", pontua à BBC News Brasil a historiadora Márcia Mura, integrante do movimento plurinacional Wayrakuna e da articulação das indígenas Mulheres Mura, além de professora de escola estadual em comunidade no Baixo Madeira, em Rondônia.
De acordo com pesquisas da historiadora Prado, além da chamada "guerra justa", havia um outro argumento que costumava ser aceito para legitimar perante a lei a escravidão indígena: alegar que aquele indivíduo havia sido resgatado como prisioneiro de alguma tribo e que seria vítima de ritual antropofágico.
Ela conta que na estrutura colonial havia um processo montado para a chamada escravidão indígena legal.
"Os [capturados] escravizados eram levados para um local chamado curral. Ali ficavam agrupados até ter número suficiente para serem levados para outro lugar, que era o arraial", explica.
"Lá havia um padre, um jesuíta, que devia fazer o chamado exame de cativeiro. Ele supostamente perguntava para o indígena se ele tinha sido escravizado de maneira legal, ou seja, se era prisioneiro que seria morto em um ritual antropofágico", conta ela, lembrando que aí seria configurado como um escravizado por resgate.
A historiadora lembra, contudo, que parece ser impossível que um religioso conhecesse toda a vasta gama de idiomas indígenas praticados no território para conseguir inquirir assim essas pessoas.
Cabia ao religioso registrar essas informações em um documento, que era chamado de "certidão de cativeiro".
"Quando indígena era escravizado por guerra justa, costumava ser leiloado. Já os 'resgatados' costumavam ser trocados por facões, anzóis, tecidos de algodão", detalha ela. "O senhor ficava com o certificado de escravidão. […] Havia toda uma estrutura."
Amigos e inimigos
Oficialmente, a escravidão indígenas teve alguns marcos legislativos de 1500 para cá.
A explicação mais razoável é que, diante da ampla variedade e povos e etnias originárias que habitavam a região onde hoje é o Brasil, os colonizadores precisaram fazer alianças e, ao mesmo tempo, criaram inimizades.
Costa explica que isso se tornou mais importante sobretudo a partir da segunda metade do século 17, quando Portugal via "a necessidade de aumentar o controle metropolitano" e, ao mesmo tempo, buscava uma "expansão territorial da colônia na América".
"E havia crise no açúcar", comenta. "Como tentativa de solucionar a crise, foi incentivada a entrada, cada vez maior e mais frequentes, nos sertões, nas regiões mais interioranas", explica.
"O que se percebe aí é algo muito marcante em todo o contexto colonial: não teria havido colonização sem aliança com povos indígenas."
Os "amigos" eram aqueles que faziam parcerias com os portugueses e abriam caminho.
Os "inimigos" acabavam mortos ou escravizados, muitas vezes com a ajuda dos "amigos".
Os religiosos jesuítas tinham o monopólio dessa servidão nos aldeamentos, sob pretexto e missão catequética. Ao mesmo tempo, faziam vista-grossa àqueles indígenas que já haviam sido feitos escravos.
Em 6 de junho de 1755 foi promulgada uma nova lei que previa a liberdade dos indígenas.
"Essa legislação conviveu com outras, inclusive do mesmo ano, que davam prioridade às lideranças indígenas ao acesso de cargos nas câmaras dos lugares onde viviam e incentivava os casamentos mistos", diz Costa. "Em 1758, isto foi estendido a toda a América Portuguesa."
No livro Dicionário do Brasil Colonial, do historiador Ronaldo Vainfas, professor na Universidade Federal Fluminense, há um verbete sobre o tema. Ali enfatiza-se que o alvará de 1755 resultava da necessidade de se contar com população livre para defesa das fronteiras e incentivo à produção agrícola.
"Foi quando, de fato, foi promulgada a liberdade dos indígenas, que não mais podiam ser escravizados de maneira alguma, eram agora súditos do império português", comenta o historiador Costa. "Ainda que sob uma condição ambígua de incapacidade. Eram tutelados."
A historiadora Prado, contudo, afirma que "cerca de 80% da escravização indígena era ilegal" — ou seja, não estava à mercê das leis, porque era praticada de forma completamente clandestina. Isto é um fator que dificulta inclusive chegar a uma estimativa de quantos foram os submetidos a tais violências.
Ela lembra que sempre houve uma "disputa pelo monopólio da exploração da mão de obra indígena no Brasil".
"Os colonos queriam explorar [esse trabalho] sem precisar de autorização, sem precisar prestar contas ao rei [de Portugal]", comenta ela. Sem regulamentação eles não tinham como pagar taxas e impostos nem seguir normas. "Às vezes até invadiam aldeias missionárias [para caçar indígenas]."
"Os jesuítas, por sua vez, embora sobre eles durante muito tempo tenha pairado uma aura, uma construção historiográfica, produzida por eles próprios, de que eram os guardiões da liberdade indígena, na prática seus aldeamentos consistiam em espaços eminentemente de trabalho", explica a historiadora.
"Os indígenas ali não eram livres. Podiam até ser chamados de trabalhadores livres, mas eles eram obrigados ao trabalho, havia a compulsão ao trabalho."
"Por fim, a Coroa tinha vontade, desejo e iniciativa de taxar a escravização", pontua.
Mas como havia um comércio estruturado de fornecimento de mão de obra escravizada negra, com o chamado tráfico negreiro, o emprego mais intenso da mão de obra indígena, segundo os pesquisadores, foram nas regiões periféricas da economia colonial, onde os colonos muitas vezes não tinham dinheiro para bancar o investimento no escravizado africano. Assim, onde mais se lançou mão da mão de obra indígena foi nos atuais estados de São Paulo, Maranhão e na região amazônica.
O entendimento é que havia, sim, uma preferência pela mão de obra africana em detrimento da indígena, se as condições financeiras permitissem.
"A questão central parece ser a seguinte: os africanos, diferentemente dos povos originários do Brasil, provinham de sociedades com diferenciação de classe social, com atividades comerciais e uso de moedas ou seus equivalentes, com conhecimentos de pecuária, com técnicas de metalurgia e com vários outros conhecimentos que os aproximavam mais das necessidades das plantations", explica à BBC News Brasil o historiador Renato Pinto Venancio, professor na Universidade Federal de Minas Gerais e autor do livro Cativos do Reino: A Circulação de Escravos entre Portugal e Brasil.
"Então, sempre que possível, os senhores de engenho optavam pela mão de obra africana. O mesmo pode ser dito em relação a Minas Gerais. Várias regiões africanas extraíam ouro. Não por acaso, o cativo africano predominante em Minas Gerais é chamado de "mina", ou seja, da Costa da Mina ou Costa do Ouro. Eles sabiam mais sobre a mineração do que a maioria dos portugueses."
"O conhecimento, a refinada tecnologia africana, é geralmente desconsiderado pela historiografia brasileira. Tragicamente, essa dimensão acabou tornando o escravizado africano mais atraente do que o indígena", comenta.
"Na verdade, a escravidão indígena ocorreu em grande parte por causa do fator econômico. Da impossibilidade de os paulistas adquirirem escravos africanos", diz à BBC News Brasil o educador e historiador Manuel Pacheco Neto, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor do livro A Escravização Indígena e o Bandeirante no Brasil Colonial. "[Eram regiões onde] reinava a pobreza, era esse o panorama."

De acordo com seus estudos, a formação da vila que daria origem à cidade de São Paulo baseou-se em produções de víveres para consumo próprio. E os colonos então empreenderam expedições ao interior, as chamadas bandeiras, para obter mão de obra a partir da "caça ao indígena", de maneira "sistemática".
"Lendo as atas da câmara, isso fica claro. Os paulistas denominavam esses indígenas de 'peças', eram vistos apenas como ferramentas de trabalho", contextualiza Pacheco Neto.
Para o professor, é importante nesse contexto inclusive dar o real significado à figura do bandeirante paulista.
"Muitas vezes é pautado na historiografia como herói. Mas foi justamente quem trouxe consigo todo o etnocentrismo que tinha em seu bojo a necessidade, entre aspas, de escravização dos nativos da terra", pontua. "Esse personagem não foi um herói."
Se oficialmente a escravidão indígena foi completamente abolida há 270 anos, em 1755, não dá para dizer que ela parou de ocorrer. Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, tornou a ser autorizada a escravização de povos indígenas específicos, considerados inimigos.
"[Nessa época] cartas régias voltaram a autorizá-la no contexto de 'guerra contra os botocudos' em Minas Gerais", diz o historiador Venancio.
E, como lembram os pesquisadores, até hoje os povos originários estão entre grupos mais vulneráveis nos casos de trabalhos análogos à escravidão.
"As violências da escravização, tanto para negros quanto para indígenas, ainda são feridas vivas, sangrando", comenta a historiadora Mura.
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