
Por Renato Feltrin Corrêa* — A expansão acelerada dos serviços de streaming no Brasil ocorreu sem uma legislação específica para regular plataformas como Netflix, Amazon Prime Video, Disney e outros. Ao contrário da TV aberta, do cinema e da TV paga — que contam com regras claras, como cotas de conteúdo nacional e taxas para fomento audiovisual —, o vídeo sob demanda permanece à margem do marco legal.
Mesmo sendo o sexto maior mercado mundial em faturamento de streaming, o Brasil ainda não possui regulamentação específica voltada para esses serviços. Assim, hoje, as plataformas operam sem obrigações legais de ofertar conteúdo local ou contribuir para fundos setoriais, o que já ocorre com as TVs pagas (Lei 12.485/2011) e os cinemas (Condecine — Medida Provisória nº 2.228-1/2001).
Esse vácuo regulatório começa a ser preenchido por propostas em discussão no Congresso Nacional. Dois projetos de lei — o PL 8.889/2017, apresentado pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP), e o PL 2.331/2022, do senador Nelsinho Trad (PSD-MS) — buscam criar regras específicas para o streaming. Ambos os projetos propõem cotas obrigatórias de conteúdo nacional nos catálogos e a inclusão das plataformas entre as contribuintes da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).
Inspirados nas cotas da TV paga, esses projetos estabelecem um percentual mínimo de produções brasileiras nos catálogos das plataformas. No caso das TVs pagas, a Lei 12.485/2011 já exige que cada canal exiba até 3h30 semanais de programação brasileira em horário nobre, metade de produtores independentes. O PL 8.889/2017 propõe que entre 2% e 20% do catálogo seja composto por conteúdo brasileiro, dependendo do porte da empresa, sendo que metade dessa cota deve ser de produções independentes.
Já o PL 2.331/2022 fixa números absolutos em vez de percentuais: plataformas com ao menos 2 mil títulos deverão oferecer um mínimo de 100 produções nacionais; aquelas com mais de 7 mil títulos devem ter 300 produções brasileiras. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) ficaria responsável pela fiscalização dessas cotas, e as plataformas deverão se cadastrar junto ao órgão em até 180 dias após o início das operações.
Atualmente, operadores de TV paga e distribuidores de cinema já recolhem a Condecine, enquanto Netflix e congêneres permanecem isentas. Assim, os projetos visam corrigir essa assimetria ao incluir os serviços de streaming entre os contribuintes desse tributo. O PL 2.331/2022 prevê alíquotas escalonadas conforme o faturamento das empresas, sendo até 3% para as grandes plataformas. Além disso, há um incentivo para reduzir essa alíquota pela metade caso 50% do catálogo seja de conteúdo nacional.
No PL 8.889/2017, as faixas são semelhantes, mas a alíquota máxima do imposto pode chegar a 4%. Plataformas com receita anual de até R$ 3,6 milhões ficariam isentas, enquanto as maiores (acima de R$ 70 milhões) pagariam o teto. Esse projeto traz ainda um diferencial: 30% da arrecadação seriam destinados a produtoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, com o objetivo de descentralizar o investimento audiovisual.
Outro ponto importante é garantir o investimento direto das plataformas em produções nacionais. No projeto da Câmara, as plataformas poderiam reduzir em até metade o valor da Condecine, caso investissem montante equivalente em conteúdo nacional, seja por coprodução, seja de aquisição de licenças. Empresas consideradas "provedoras plenas" (com ao menos 50% do catálogo brasileiro) teriam alíquota reduzida para 3%, podendo chegar a zero caso investissem integralmente em produção audiovisual nacional.
Esses mecanismos buscam formalizar o compromisso das grandes plataformas com o desenvolvimento cultural brasileiro, incentivando-as a atuar como financiadoras diretas do setor audiovisual e a valorizar a carreira de técnicos e artistas locais. Para o público, isso significa maior oferta e visibilidade de filmes, séries e documentários nacionais, estimulando a produção local e promovendo maior diversidade cultural.
A regulação proposta no Brasil segue uma tendência já consolidada internacionalmente. Em 2018, a União Europeia estabeleceu uma diretriz exigindo que pelo menos 30% dos conteúdos disponíveis nas plataformas de streaming sejam europeus, além de contribuições financeiras obrigatórias para a produção local. Países como França e Espanha já implementaram tais exigências com sucesso.
O Canadá também atualizou recentemente sua legislação, com a Online Streaming Act, que determina investimento mínimo das plataformas em produções canadenses, além de exigências para que os conteúdos locais tenham destaque nos catálogos.
Portanto, a regulação do streaming no Brasil busca corrigir um descompasso legislativo, equilibrar as condições concorrenciais entre diferentes segmentos do mercado audiovisual e assegurar que grandes empresas internacionais contribuam de forma proporcional para o desenvolvimento da indústria cultural brasileira.
Se aprovadas, essas medidas poderão gerar benefícios significativos, como o aumento do financiamento disponível para produções locais, o fortalecimento das produtoras independentes e a expansão das oportunidades para profissionais brasileiros do audiovisual. Por fim, a aprovação dessas leis representa um avanço importante na criação de um ambiente regulatório mais justo e transparente para o streaming no país, aproximando-se das práticas já bem-sucedidas em mercados internacionais. O desafio agora será garantir que as regras sejam calibradas para estimular o setor sem onerar excessivamente os consumidores ou inibir a inovação das plataformas digitais.
Advogado especializado em direito digital e compliance*
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