
Depois de coração e rins, cientistas anunciaram o transplante bem-sucedido de um fígado de porco geneticamente modificado para um receptor humano. O feito inédito foi descrito na revista Nature, mas ocorreu há um ano, na China. Em 2013, a mesma equipe realizou um procedimento semelhante em um macaco, que sobreviveu por 14 dias, abrindo caminho para o experimento relatado.
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Xenotransplantes — transplantes de órgão entre espécies diferentes — entraram em uma nova era, afirmou, em uma coletiva de imprensa transmitida on-line Lin Wang, um dos líderes do estudo e pesquisador da Quarta Universidade Médica Militar em Xian. Ele lembrou que, anteriormente, colegas da Universidade de Maryland, do Hospital Geral de Massachusetts e da Universidade de Nova York, todas nos Estados Unidos, usaram o coração e os rins de porcos em experimentos com pessoas.
O porco é considerado um modelo ideal para o procedimento devido à fisiologia, parecida à do ser humano. A expectativa dos pesquisadores é, no futuro, usar o fígado animal como ponte, ou seja, um auxiliar na manutenção das funções essenciais, até que se encontre um doador compatível com o paciente.
Na pesquisa atual, o órgão de um porco em miniatura geneticamente modificado, para evitar rejeição, foi transplantado para o organismo de um homem de 50 anos, com morte cerebral. A família do paciente permitiu que suas funções vitais fossem mantidas por aparelhos durante 10 dias, para observar o comportamento do fígado. "Foi a primeira vez na área médica que um fígado de porco geneticamente modificado foi transplantado para um corpo humano. Observamos que o fígado funcionou bem", contou, na entrevista, Ke-Feng Dou, também da Quarta Universidade Médica Militar.
Como o experimento está em fase inicial, apenas as funções hepáticas básicas foram avaliadas. No período de observação, o órgão realizou suas tarefas metabólicas básicas, produzindo bile e albumina, embora em quantidades reduzidas, comparado ao ser humano, além de manter o fluxo sanguíneo estável.
Com seis genes modificados previamente, não houve sinais de rejeição — as respostas imunes do receptor foram bem controladas com medicamentos imunossupressores. "A pesquisa é um avanço significativo no campo do xenotransplante, fornecendo uma base teórica e experiência prática para futuras aplicações clínicas", disse Dou.
Segundo Lin Wang, um desafio no transplante hepático é que, diferentemente do coração e dos rins, o fígado tem múltiplas funções, o que aumenta a complexidade do órgão. "O coração apenas bombeia o sangue, mas o fígado filtra o sangue, metaboliza substâncias e produz a bile, que auxilia na eliminação de resíduos e na digestão de gorduras", comparou. "A multifuncionalidade do fígado foi um enorme obstáculo a ser superado", destacou o pesquisador.
Brasil
O transplante de fígado é o tratamento mais eficaz para doenças hepáticas em estágio terminal, mas a demanda por órgãos de doadores excede em muito a oferta. No Brasil, segundo o Registro Brasileiro de Transplantes, até setembro de 2024, 2.916 pessoas aguardavam na fila por um fígado compatível.
"Os xenotransplantes são, de fato, considerados uma estratégia promissora para beneficiar os seres humanos, especialmente em um cenário onde há uma escassez crítica de órgãos humanos disponíveis", avalia Natalia Trevizoli, médica hepatologista e gastro-hepatologista do Hospital Santa Lúcia, de Brasília. "A viabilidade dessa abordagem em larga escala dependerá de avanços em áreas como engenharia genética, controle imunológico, segurança biológica e questões éticas relacionadas ao uso de animais."
Para Iván Fernández Vega, professor de Anatomia Patológica na Universidade de Oviedo, na Espanha, "as implicações clínicas são altamente relevantes, pois otimizar essa abordagem pode expandir o conjunto de órgãos disponíveis e salvar vidas em emergências hepáticas". O médico, que não participou do estudo, porém, lembra que é preciso cautela ao interpretar os resultados. "Apenas funções hepáticas básicas (síntese de albumina e secreção biliar) foram avaliadas, sem dados sobre outras funções hepáticas complexas, como metabolismo de medicamentos, desintoxicação ou função imunológica", enumera.
Três perguntas para Natalia Trevizoli - médica hepatologista e gastro-hepatologista do Hospital Santa Lúcia, de Brasília
Em termos de técnica, como o transplante descrito no artigo se difere dos xenotransplantes anteriores?
O transplante de fígado, rim e coração são procedimentos médicos distintos, cada um com suas particularidades devido às diferenças funcionais, biológicas e imunológicas entre esses órgãos. Estas diferenças influenciam na complexidade do procedimento, nas indicações médicas e no pós-operatório. Embora a técnica básica de xenotransplante de órgãos de porco, como coração e rins, compartilhe semelhanças com o xenotransplante de fígado, a complexidade funcional e imunológica do fígado exige modificações profundas tanto no órgão quanto nos processos imunológicos. As estratégias para superar essas barreiras envolvem engenharia genética mais sofisticada, maior controle sobre a funcionalidade do órgão e um foco maior na prevenção de infecções zoonóticas, dado o papel crucial que o fígado desempenha em processos imunes e metabólicos no corpo humano.
Embora o experimento tenha sido realizado em um indivíduo com morte cerebral, os resultados são suficientes para se imaginar um novo procedimento com paciente vivo?
O xenotransplante de fígado tem sido estudado há décadas como uma alternativa à escassez de órgãos humanos. No entanto, os desafios imunológicos e o risco de rejeição sempre foram grandes obstáculos. Por essa razão, ainda não é uma prática clínica estabelecida, mas avanços recentes na engenharia genética e na imunologia indicam que ele pode se tornar viável em um futuro próximo. Testes experimentais estão sendo feitos com fígados de porcos modificados, principalmente no contexto de auxiliar na função hepática temporariamente. Ou seja, antes do transplante definitivo, fígados de porcos poderiam ser usados como auxiliares para pacientes com insuficiência hepática aguda. O xenotransplante de fígado em pacientes vivos ainda não é realidade, mas os avanços recentes indicam que pode se tornar uma alternativa viável, especialmente como suporte temporário antes do transplante humano. Com o avanço da edição genética, testes clínicos podem começar nos próximos anos.
O pouco tempo de acompanhamento é uma limitação importante da pesquisa?
Sim, o pouco tempo de seguimento é uma limitação do estudo em questão, pois pode ter sido insuficiente para analisar alterações na função do xenoenxerto. A rejeição imunológica é um problema para qualquer tipo de xenotransplante. Os xenotransplantes hepáticos exigem modificações genéticas complexas, como a modificação das proteínas específicas na superfície das células hepáticas que interagem com o sistema imunológico humano. Neste caso, o uso de modificação genética pode ter evitado a rejeição hiperaguda no receptor, além do uso de diversos imunossupressores.
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